COMPETÊNCIA E HABILIDADES: Elementos para uma reflexão pedagógica
Lino
de Macedo*
Em
textos sobre Educação é freqüente, hoje, o uso dos termos competências e habilidades. Por isso, o propósito aqui será
analisar, na primeira parte, algumas razões para a importância atual dessas
noções e oferecer, quem sabe, elementos para uma reflexão pedagógica sobre o
significado de considerarmos a educação na perspectiva desses dois domínios. Na
segunda parte do texto, o objetivo será analisar um pouco o desenvolvimento de
competências e habilidades em relação à autonomia, diversidade, disponibilidade
para aprendizagem, interação e cooperação, organização do espaço, organização
do tempo e seleção de material.
Por
que competências e habilidades, hoje?
Para
situar o tema, consideremos, por exemplo, um jogo de percurso em que uma
criança é convidada a movimentar uma peça de um ponto de partida até um ponto
de chegada. O percurso é compartimentado, ou seja, dividido em unidades, sendo
que em algumas delas inscrevem-se tarefas como "voltar à casa l0",
"perder a vez", etc. Os dados definem o número de passos a seguir.
Nesse tipo de jogo, então, propõe-se um problema a ser resolvido: realizar um
percurso: realizar um percurso, seguindo as regras, enfrentando e superando os
obstáculos propostos.
Por
analogia, podermos pensar a educação fundamental, hoje, como um jogo de
percurso em que a todas as crianças foi atribuído o direito de o fazerem.
Algumas farão o percurso, isto é, cursarão as oito séries de modo fácil, rápido
e sem muitos problemas. Outras experimentarão muitas idas e vindas e os dados,
ou seja, as contingências para a realização do percurso, às vezes ajudarão
muito, às vezes ajudarão pouco. Além disso, as tomadas de decisão, as
estratégias, as táticas, as regras, etc. No contexto desse jogo, sofrerão toda
a sorte de variação ou manipulação, algumas vezes, a favor do jogo, outras
vezes, contra.
O
direito de todas as crianças percorrerem os ciclos que compõem a escola
fundamental é uma conquista recente e importante. Está expresso, por exemplo,
na Declaração dos Direitos Humanos (1948), no Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990), em nossa atual Constituição Brasileira (1988) e, mais
recentemente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). Com
isso, pretende-se que a escola seja para todos e que nela as crianças possam
formar valores, normas e atitudes favoráveis a sua cidadania e dominarem
competências e habilidades pra o mundo do trabalho e da vida social, nos termos
em que hoje se expressam.
Nem
sempre a escola foi aberta para todos. Tínhamos antes, como ainda temos agora,
uma escola da excelência que seleciona, orienta, ensina e certifica apenas as
pessoas que conseguem realizar tarefas e que apresentam uma conduta condizente
com o alto nível exigido por elas. Essa escola da excelência, não sem razão,
ainda que pouco acessível à maioria de nós, tornou-se nossa referência
principal, é o sonho ou a aspiração de pais e crianças. Muitos professores,
igualmente, gostariam de trabalhar nesse tipo de escola ou que seus alunos
tivessem um comportamento compatível com as exigências dela. Mas a realidade
nos diz que na escola da excelência poucas crianças têm condições de entrar,
menos ainda de permanecerem nela ou de serem bem-sucedidas nas muitas provas e
desafios que terão que enfrentar.
Na
escola da excelência, certos domínios no plano da conduta ou convivência social
(educação, respeito, disciplina, limites, etc.) e no plano intelectual (estudo,
compreensão, realização das tarefas), são condições prévias ou pré-requisitos
fundamentais. Espera-se que os alunos tenham isso de partida e que continuem
assim durante toda a trajetória escolar. Se no caminho alguns se desviam ou
perdem tais virtudes terão que se recuperar logo, ao preço de serem excluídos e
virem fracassados seus objetivos. Por suposto, a escola da excelência faz muito
bem sua parte: oferece bons professores, utiliza os melhores livros ou
materiais, orienta, aconselha, dá oportunidades, enfim é exigente, mas generosa
nos recursos a serem aproveitados pelos alunos.
Na
escola para todos, por definição, as qualidades selecionadas e valorizadas na
escola da excelência são referências ou qualidades desejadas, mas não definem o
ponto de partida, nem a condição para a realização do percurso. Na escola para
todos, podem entrar crianças com toda a sorte de limitações ou dificuldades.
Seus pais, sua condição de vida, podem ter todas as combinações ou formas de
expressão, não importando se isso será favorável ou não ao trabalho escolar. Na
escola para todos, as dificuldades em realizar o percurso é motivo de
investigação das estratégias, que complementam o ensino no horário regular das
aulas, de revisão das condições que dificultam o aproveitamento escolar das
crianças.
Na
escola da excelência, competências e habilidades, nos termos em que
analisaremos mais adiante, são meios para outros fins: a erudição, o
aperfeiçoamento, o domínio das matérias ou disciplinas, a realização de metas
ou trabalhos de ponta. Na escola para todos, competências e habilidades são o
próprio fim e, nela, as matérias ou atividades escolares são os meios que
possibilitam sua realização.
Do
considerado acima, podemos concluir que a escola da excelência é melhor do que
a escola para todos? Penso que essa não é uma boa pergunta, porque pressupõe a
ausência da excelência na escola para todos ou a ausência de problemas ou
dificuldades na escola de excelência. Além disso, não é uma boa pergunta porque
compara, pedindo escolha, dois valores - a excelência e a equanimidade -
igualmente fundamentais. O primeiro, porque nos dá o direito de sermos melhores
do que já somos, como expressão de nossa necessidade e possibilidade de
aperfeiçoamento na luta da vida contra a rnorte (injusta e sem sentido),
doença, miséria, sofrimento ou ignorância. Em outros termos, temos o direito de
viver em favor da saúde, do conforto, da alegria, da liberdade e do amor ao
conhecimento. O segundo, porque abre, sem privilégio ou condições, a
possibilidade de todos freqüentarem a escola e nela realizarem, por direito,
sua formação. Além disso, a escola para todos pode revelar ou formar, por
certo, muitos alunos que possuem ou aprendem as qualidades da excelência. Ser
excelente ou continuar assim, mormente em uma sociedade competitiva e
tecnológica, como a nossa, é muito difícil e muitos perderão essa condição,
muitos não suportarão o peso da concorrência, mesmo na escola.
Exercício
ou problema?
Aproveitemos
a situação para uma reflexão sobre a diferença entre exercício e problema. O
jogo, acima proposto, é um jogo de exercício ou de problemas. E o que
exatamente significa exercício?
Consideremos o ato de caminhar. Caminhar é um exercício quando já adquirimos
essa habilidade. O exercício supõe, então, a repetição de uma aquisição -
motora, no caso - de uma habilidade que, para aquele que a executa, não
constitui um problema. O exercício, nesse caso, corresponde a um meio para
outra finalidade, por exemplo, fazer o coração trabalhar mais, do ponto de
vista cardiovascular. Com isso, o exercício ajuda a combater problemas
cardíacos, obesidade, estresse, etc.
O
caminhar, no caso indicado acima, não é um problema em si, pois se trata de
repetir um padrão, um esquema ou hábito já aprendido. Porém, no decorrer do
percurso, podem-se enfrentar problemas. Por exemplo: ter de atravessar uma rua
movimentada e obrigar-se a estar atento aos veículos, para não se acidentar;
evitar o possível ataque de um cachorro, não se deixar distrair pelas coisas
interessantes vistas ao longo do caminho, etc. Esses são exemplos de problemas
porque implicam situações inesperadas, implicam resolver ou decidir sobre
variáveis não previstas no esquema do caminhar. Esses problemas, como no jogo
que lembramos acima, são obstáculos ao longo do percurso, que pedem, como é
usual em situações problemáticas, interpretação do desafio proposto no
contexto, planejamento da solução ou das soluções possíveis, execução da
solução planejada e avaliação dos resultados.
Tudo
isso no momento em que se realiza a atividade. Ou seja, problema é aquilo que
se enfrenta e cuja solução já conhecida ou incorporada não é suficiente, ao
menos no conteúdo. Explico: há problemas que nos desafiam não pela forma,
porque essa já é conhecida,
mas pelo seu conteúdo, que é novo, inusitado, singular, original. Não é assim,
na resolução de palavras cruzadas? Sabemos, por experiência prévia, em que
consiste a problema e como se deve resolvê-lo, mas não conhecemos a solução
para aquele problema particular, com cujo conteúdo
estamos entrando em contato nesse momento.
Penso
que vale a pena insistir na distinção entre exercício e problema porque,
algumas vezes, nas escolas e nos livros didáticos, problemas e exercícios são
tratados como se fossem equivalentes. Voltemos ao jogo de percurso. Uma coisa é
seu uso como recurso para exercitar cálculos que a criança já aprendeu e que
pode "fortalecer" por intermédio desse jogo. Outra, são os problemas
propostos no contexto do jogo ou mesmo de certos tipos de cálculos que implicam
tomadas de decisão, correr riscos, etc. É importante termos em conta que o
cálculo pode não ser o problema, ainda que faça parte de sua solução ou
corrobore para ela. Em outras palavras, o exercício é fazer contas; o problema
é realizar uma conta para a qual não se estava suficientemente preparado,
porque é de um outro tipo,
tem uma estrutura mais complexa, coloca uma dificuldade a mais, etc.
Em
síntese, exercício é o repetir, como meio para uma outra finalidade: por
exemplo, caminhar para promover um trabalho cardiovascular. Problema é o que
surpreende nesse exercício, é o novo, o que supõe invenção, criatividade,
astúcia. É certo, também, que, dependendo da forma como é proposto, o exercício
pode configurar um problema.
Seria
então possível perguntar se as questões são formas de exercício ou de problema,
aliás, uma boa pergunta. Há questões que têm sentido de questão, mas há outras,
por exemplo, que propõem cópia ou algo não desafiador. Ou seja: uma pergunta
pode ter várias intenções: pedir conselho, falar mais sobre o assunto,
suspender um juízo sobre o que está sendo analisado, fazer comparações. Certas
questões sugerem bons problemas, outras não. Por exemplo, há questões que
propõem bons problemas para o professor, mas não necessariamente para os alunos
a quem são dirigidas. O importante é que a questão faça gerar um desejo ou uma
necessidade que só o trabalho de encontrar uma solução possa satisfazer. É
fundamental, ainda, que a questão proponha um desafio que possa proporcionar ao
sujeito que o experimenta algo no mínimo original, criativo ou surpreendente.
Convenhamos, na escola nem sempre sabemos fazer isso.
Um
comentário freqüente dos professores é que, muitas vezes, o aluno não consegue
ler um problema de matemática corno um problema, ou seja, a pergunta ou tarefa
proposta não implica um desafio. A criança, no caso, não sabe interpretar o que
está sendo proposto, pois lhe falta às vezes perspicácia para captar o sutil, o
fator problemático da questão. É certo, também, que professores não investem,
às vezes, muito tempo na leitura, discussão e análise do problema proposto,
deixando que o aluno faça isso por si mesmo. Outras vezes, o problema está mal
formulado, o que dificulta sua proposição como tal. Por isso, penso que poderia
ser proveitoso, em uma reunião de professores discutir, por exemplo, uma prova
que foi dada aos alunos. As tarefas estavam bem propostas? O texto estava
claro, interessante, bem escrito? Por que certos erros aconteceram nas
respostas ou interpretação dos alunos?
Ter
sede pode ser uma questão, mas que pode não constituir um obstáculo, pois há
água disponível, o sujeito sabe pôr água no copo, sabe levá-lo à boca, sabe
beber. Há um caminho a percorrer (como no jogo de percurso), mas para o qual
todos os passos estão já, de certa forma, resolvidos por antecipação, basta
executá-los. Em outras palavras, uma questão pode implicar obstáculos ou não.
Durante
uma aula sobre esse tema, uma aluna mostrou-me o seguinte exemplo: seu sobrinho
fazia uma lição de matemática, que tinha o seguinte enunciado: "Fulano tem
17 selos a mais que Beltrano. Juntando-se os selos de ambos, quantos selos
haverá no total?". Lendo o problema, ele conclui rapidamente que era
"tudo continha de mais". A questão é: isso é problema ou não? Penso
que é um problema na perspectiva do professor e na perspectiva do que está
proposto no texto. Mas, suponho que não seja na perspectiva do aluno, a julgar
pela forma imediata e irrefletida com que concluiu tratar-se apenas de fazer
"continhas de mais". Um problema supõe um projeto mais complexo, que
envolve, para seguir o esquema clássico de Polya, interpretação da questão
proposta, planejamento, execução e avaliação. Envolve também atenção, malícia,
espírito crítico reflexão. Essas atitudes aparentemente não estavam presentes
na resposta imediata e "fácil" da criança citada por minha aluna.
Um dos
problemas mais difíceis hoje para os professores é o que se tem chamado de
"gestão da sala de aula". Ou seja, a organização temporal e espacial
das atividades que dizem respeito aos alunos e professores, visando ao ensino e
à aprendizagem. Os professores queixam-se de que os alunos não aprendem, fazem
bagunça, são mal educados, irreverentes. Queixam-se, também, da insuficiência
de recursos para resolver esses problemas. Sentem-se impotentes e desamparados.
Como transformar tudo isso em um problema no sentido legítimo do termo? Tais
dificuldades se converteriam em objeto de discussão se, conversando com o
orientador ou discutindo a questão com colegas, fosse possível planejar, no
sentido de projeto pedagógico, um trabalho visando à superação dessas
dificuldades: discutindo estratégias, compartilhando situações comparáveis,
planejando formas de solução, avaliando o sucesso ou fracasso das iniciativas
já tomadas, refletindo sobre os fatores que produzem tais dificuldades, lendo
um texto ou ouvindo uma palestra relacionada ao tema em discussão. Lamentos e
queixas não são problemas no sentido que queremos aqui valorizar. Uma queixa
tem "cara" de problema, mas não é um problema. É só uma queixa, algo
muito desagradável, apenas isso. Existe um problema quando se transforma a queixa
em um desafio a ser superado. Às vezes um bom problema começa com uma queixa.
Então, o desafio é o de transformá-la em um problema. E isso também é
problemático! Transformar uma queixa ou dificuldade em problema é sair de uma
posição em que esses fatores funcionam como adversários ou competidores de
nossos objetivos para uma posição em que se tornam cooperativos e
participativos, ou seja, adquiram uma função construtiva.
Penso
ser útil essa reflexão, porque usualmente na escola associamos a palavra
problema apenas à disciplina de Matemática. A Editora Artes Médicas publicou
recentemente a tradução de um livro organizado por Juan Ignazio Pozo, que se
chama Solução de Problemas. Há nesse trabalho capítulos sobre
problemas em outras áreas: nas ciências sociais, biologia, história, geografia.
Muitos de meus comentários, aliás, foram inspirados pela leitura desse livro.
Competências
e Habilidades
Por
que decidi, em um texto sobre competência e habilidades, iniciar comentando
sobre solução de problemas? Para responder a essa questão talvez valha a pena
mais uma pequena digressão.
Até
pouco tempo, a grande questão escolar era a aprendizagem – exclusiva ou
preferencial - de conceitos. Estávamos dominados pela visão de que conhecer é
acumular conceitos; ser inteligente implicava articular logicamente idéias,
estar informado sobre grandes conhecimentos, enfim, adquirir como discurso
questões presentes principalmente em textos eruditos e importantes. Nesses
termos, dar aula podia ser para muitos professores um exercício intelectual
muito interessante. O problema é que muitos alunos não conseguem aprender nesse
contexto, nem se sentem estimulados a pensar, pois sua participação nesse tipo
de aula não é tão ativa quanto poderia ser.
Hoje,
essa forma de competência continua sendo valorizada, principalmente, no meio
universitário. Ma, com todas as transformações tecnológicas, tecnológicas,
sociais e culturais, uma questão prática, relacional, começa a se impor com
grande evidência. Temos muitos problemas a resolver, muitas decisões a tomar,
muitos procedimentos a aprender. Isso não significa, obviamente, que dominar
conceitos deixou de ser importante.
Esse
tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar, mas cada vez mais torna-se
necessário também o domínio de um conteúdo chamado de
"procedimental", ou seja, da ordem do saber como fazer. Vivemos em uma sociedade cada vez
mais tecnológica, em que o problema nem sempre está na falta de informações,
pois o computador tem cada vez mais o poder de processá-las, guardá-las ou
atualizá-las. A questão está em encontrar, interpretar essas informações, na
busca da solução de nossos problemas ou daquilo que temos vontade de saber.
Se
queremos escrever um texto no computador, o programa, isto é, o processador de
textos está preparado para realizar muitas operações e nos oferece muitas
possibilidades de solução. Além disso, como é usual atualmente, antes que
tenhamos explorado todos os recursos de um programa, surge uma nova versão.
Como nem sempre é possível dispor de um professor que nos ensine, pois também
são novidade para ele e, como fica muito caro contratar um professor, temos de
aprender, sozinhos, ajudados pelo manual. Hoje, temos, de aprender a aprender. Hoje, competências e habilidades
que as expressam são mais fundamentais do que a excelência na realização de
algo sempre superado ou atualizado por uma nova versão ou por nova necessidade
ou problema.
No
tempo em que a escola - mesmo as públicas - não era para todos, manter a
disciplina, como problema de gestão de sala de aula, talvez não tivesse a
dimensão que tem hoje. Rigor, expulsão (ou sua ameaça), castigos físicos,
cumplicidade da família com as estratégias usadas pelo professor garantiam,
talvez de forma mais imediata e eficaz, que os alunos se mantivessem quietos
enquanto o professor dava as lições. Hoje, que a escola fundamental é
obrigatória para todas as crianças, manter a classe interessada nas propostas
do professor concorre com e, muitas vezes, perde para tudo o que em
contraposição os alunos insistem em fazer. Não por acaso, sabe-se que
freqüentemente os professores gastam mais da metade do tempo da aula tentando
manter um nível de disciplina favorável à aprendizagem. Ou seja, ensinar
conceitos ou cálculos concorre com conversas paralelas, risadas e brincadeiras.
O professor, além do compromisso de ensinar conceitos, deve saber manter a disciplina
na sala de aula, envolver os alunos e conseguir que sejam cooperativos e façam
as tarefas. Ora, uma coisa é a competência do professor para expor um tema,
outra é sua habilidade ou competência para conquistar o interesse das crianças
e envolvê-las nas propostas de sala de aula. Por isso, esse conteúdo - gestão
da sala de aula - é hoje tão importante.
Um
outro exemplo: uma aluno pode não se sair bem em geografia porque não aprendeu
os conceitos dessa disciplina, mas também porque não sabe estudar, nem se
organizar em termos de espaço, tempo ou outros aspectos materiais.
O que
resulta dos comentários acima é que, na perspectiva do professor, o desafio,
hoje, é coordenar o ensino de conceitos e gestão de sala de aula - aí
compreendidas aprendizagens de procedimentos, valores, normas e atitudes.
As
três formas de competência
Passemos
agora ao objetivo principal desse texto: fornecer elementos para uma reflexão
pedagógica sobre significados de competência
e habilidades.
Para
isso, lembro um pedido feito a uma orientadora pedagógica: que se lembrasse de
alguém considerado como bom professor. Que competências ela lhe atribuía?
Diante dessa pergunta, a orientadora indicou uma colega, justificando sua
escolha pelas seguintes razões: sua capacidade de desenvolver os conteúdos
escolares, de saber desafiar seus alunos; por ser comprometida, responsável e
por saber manejar bem a sala de aula. Em resumo, ela era um exemplo de
professora que enfrentava e superava os desafios, para que assim pudesse
ensinar e aprender; era uma pessoa culta, estudiosa e que investia em sua
formação.
Perguntando
a professores sobre palavras associadas à competência, deles ouvi as seguintes:
capacidade, desempenho, domínio. Perguntando a uma professora se era competente
como cozinheira, essa disse que não, "porque não tinha paciência com
fogão".
Proponho
que competência seja entendida de três modos, muito interessantes e comuns.
Competência
como condição prévia do sujeito, herdada ou adquirida. É comum
definir competência como capacidade de um organismo. Saber respirar, mamar, por
exemplo, são capacidades herdadas. Nascemos com competência comunicativa, isto
é, herdamos nossa aptidão para a linguagem. Ao mesmo empo, temos de adquirir
competência em uma ou mais línguas, pois essas não são herdadas, mas aprendidas
e se constituem patrimônio de nossa cultura e de nossa possibilidade de
comunicação.
Nesse
caso, competência e desempenho são dimensões diferentes. O caminhar concreto,
em uma determinada situação e em função de uma certa necessidade, não é
comparável à capacidade de caminhar, independentemente de que o desempenho
dessa capacidade esteja ocorrendo ou não, ou seja: ter capacidade de caminhar não é caminhar.
Competência,
nesse primeiro sentido, significa, muitas vezes, o que se chama de talento, dom
ou extrema facilidade para alguma atividade. Há professores cuja competência
para ensinar decorre dessa facilidade. É como se fosse uma condição prévia,
herdada ou aprendida. Aprendida porque, uma vez que alguém consegue um diploma
ou é declarado formado ou habilitado para uma certa função é como se,
imediatamente, isso se tornasse um patrimônio seu.
Esse
primeiro sentido de competência implica uma idéia de dependência ou condição.
Qualquer criança que nasça em nosso país tem de adquirir competência para ler e
escrever, caso contrário, será excluída de muitas situações. Quando uma escola
contrata um novo professor, avalia se esse tem competência para ensinar, ou
seja, leva em conta seu currículo para contratá-lo. De preferência, seleciona um
professor com essa competência já adquirida em outras escolas, porque, nesse
caso, interessa alguém já experiente.
Essa
primeira forma de competência não significa apenas formas de aquisição, mas
também pode se referir a uma perda - permanente ou transitória - de
competência. Por exemplo, podemos perder ou diminuir nossa capacidade
respiratória ou condição para realizar uma certa tarefa. Em caso de acidente,
podemos perder nossa possibilidade de locomoção. Da mesma forma, um professor
pode, por diversos fatores perder sua competência didática.
Competência
como condição do objeto, independente do sujeito que o utiliza. Refere-se á competência da máquina ou do objeto. Por
exemplo, a competência da máquina ou do objeto. Por exemplo, a competência ou
habilidade de um motorista não tem relação direta com a potência de seu
automóvel. O mesmo acontece com relação aos computadores e seus usuários. Una
coisa é nossa condição de operar um certo programa. Outra é a potência do
computador, sua velocidade de processar informações, memória.
Na
escola, essa forma de competência está presente, por exemplo, quando julgamos
um professor pela ‘competência’ do livro que adota, da escola em que leciona,
do bairro onde mora.
É
muito comum, julgarmos uma criança tomando por base a escola em que estuda.
Nesse caso também, trata-se de uma competência do objeto, pois esse é
independente do sujeito, ainda que possa dar uma informação a respeito daquele
o utiliza. O mesmo vale, para o livro que o professor usa em sala de aula, como
um dos indicadores da qualidade de seu ensino. Para citar um outro exemplo, a
qualidade que se atribui aos itens de uma prova não se relaciona,
necessariamente, com competência ou habilidade dos que a respondem.
Competência
relacional. Essa terceira forma de competência é
interdependente, ou seja, não basta ser muito entendido em uma matéria, não
basta possuir objetos potentes e adequados, pois o importante aqui é o
"como esses fatores interagem". A competência relacional expressa
esse jogo de interações. É comum na escola um professor saber relatar bem um
problema que está acontecendo em sala de aula, mas na própria aula não saber
resolver situações relacionadas com a indisciplina, espaço ou tempo.
Numa
partida de futebol, para fazer gol, não basta que o jogador saiba chutar a gol,
fazer embaixadas, correr com a bola no pé, é necessário que saiba coordenar
tudo isso no momento da partida.
No
caso de uma conferência, a qualidade do texto (competência do objeto) não é
condição suficiente para que ela atinja os objetivos do conferencista, é
necessário fazer uma boa leitura (competência do sujeito), considerando as
reações da platéia, o ritmo, as pausas, etc. (competência relacional).
A
situação de jogo é um bom exemplo de competência relacional, pois essa forma
sempre se expressa em um contexto de interdependência. "Não se ganha o
jogo na véspera", como se diz usualmente. Na véspera, há muitas ações que
se podem realizar (treinar, estudar outras partidas, etc.), mas são as leituras
ou interpretações, no momento do jogo propriamente dito, as tomadas de decisão,
as coordenações entre ataque e defesa que definirão as possibilidades de ganhar
ou perder. Por isso, o jogo é uma boa metáfora para tantas outras situações
que, como ele, dependem de competência relacional. A sala de aula é um bom
exemplo disso. Muito se pode e deve fazer previamente: estudar, preparar e
selecionar materiais, escrever o texto ou definir o esquema a ser seguido. Mas
há outros fatores que só podem e devem ser definidos no momento da aula, em
função de outros que não se podem antecipar, justamente porque são construídos
no jogo das interações entre o professor, seus alunos e os materiais de ensino.
Como desenvolver competência relacional? Como articular as três formas de
competência?
As
três formas de competência, acima descritas, na prática não se anulam
necessariamente, pois se referem a dimensões diferentes e complementares de uma
mesma realidade.
O
elemento surpresa que caracteriza um dos aspectos da competência relacional não
deve ser confundido com improvisação ou impossibilidade de antecipação; indica,
apenas, que certos aspectos só acontecem em contexto interativo: são produções
coletivas, que não estão nesse ou naquele termo em particular, mas que
correspondem à coordenação de perspectivas ou a algo que é resultante da
multiplicidade constitutiva dos objetos produzidos em um contexto de
construção.
A
formação do professor, essa necessidade tão legitimamente valorizada hoje em
dia, pode ser um bom exemplo desse tipo de competência. Que aspectos de sua
formação correspondem ao desenvolvimento de uma competência do sujeito? Quais
aspectos são competência do objeto? Quais são da relação sujeito-objeto? Quanto
a essa última forma, o problema é que só podemos dar coordenadas, discutir, a posteriori, casos ilustrativos, confiando que
o professor beneficiado por essas reflexões, irá melhorar sua competência em
outras situações. Por isso, é insuficiente como formação apenas fornecer
elementos teóricos ao professor ou lhes indicar boas leituras. E importante,
também, analisar situações práticas em que o aspecto relacional possa ser
analisado.
Competência
e habilidade
A
diferença entre competência e habilidade, em uma primeira aproximação, depende
do recorte. Resolver problemas, por exemplo, é uma competência que supõe o
domínio de várias habilidades. Calcular, ler, interpretar, tomar decisões,
responder por escrito, etc., são exemplos de habilidades requeridas para a
solução de problemas de aritmética. Mas, se saímos do contexto de problema e se
consideramos a complexidade envolvida no desenvolvimento de cada uma dessas
habilidades, podemos valorizá-las como competências que, por sua vez, requerem
outras tantas habilidades.
Qual a
diferença entre competência e habilidade de ler? Saber ler, como habilidade,
não é o mesmo que saber ler como competência relacional. Em muitas situações
(quando temos de ler em público, por exemplo), ou não sabemos ler, ou temos
dificuldades para isso. Como coordenar as perspectivas do texto, dos ouvintes e
do leitor? Todos conhecemos escritores brilhantes, mas que não são bons
conferencistas. Na escola ocorre algo semelhante quando se trata de ler poesias
ou contar histórias: nem todos os professores sabem como fazê-lo.
O
mesmo ocorre na transmissão de um conteúdo no contexto da sala de aula. Há
professores que sabem fazê-lo de forma agradável, comunicativa, com entusiasmo
e competência. Os alunos, certamente, participam, envolvem-se, sentem-se
incluídos, encantados (e, a seu modo, agradecem).
Para
dizer de um outro modo, a competência é uma habilidade de ordem geral, enquanto
a habilidade é uma competência de ordem particular, específica. A solução de
um, problema, por exemplo, não se reduz especificamente aos cálculos que
implica, o que não significa dizer que o cálculo não seja uma condição
importante. Igualmente, ainda que escrever a resposta não corresponda a tudo
que está envolvido na solução de um problema, é uma habilidade essencial. O
mesmo se pode dizer do tempo entre a leitura e a proposição da resposta, por
exemplo.
Voltando
ao jogo de percurso. Há muitas habilidades envolvidas em sua solução: ficar no
caminho, jogar os dados, ler os números do dado, caminhar em função dos pontos,
etc. Quanto à tomada de decisão (o que é melhor fazer, em face das
circunstâncias de que momento do jogo e seu objetivo) penso que se refere a uma
competência relacional. Ou seja, as habilidades são necessárias, mas não
suficientes, ao menos na perspectiva relacional.
Para
se comunicar bem em uma palestra, apenas saber ler é uma condição insuficiente,
pois há uma conjunção de fatores que são de outra ordem. O que não quer dizer
que competência seja apenas um conjunto de habilidades: é mais do que isso,
pois supõe algo que não se reduz à a soma das partes.
Na
visão relacional de competência aqui proposta, se os alunos não aprenderam é
porque o professor não ensinou, independentemente de sua competência pessoal no
domínio dos conteúdos e do valor, de verdade, de sua exposição.
Competição,
competência e concorrência
Como
analisar os termos competência, competição e concorrência, em uma perspectiva
relacional?
Competição. Competir quer dizer com - petir, isto é, "pedir
junto". O prefixo "com" significa ao mesmo tempo,
simultaneamente. O radical "petir" significa pedir. Filhos, marido,
telefone, etc., muitas vezes pedem ao mesmo tempo a atenção da mesma pessoa (a
mãe, a esposa, a filha, sintetizadas numa única mulher). Não lhe é possível
atender igualmente a todos. Numa sala de aula, por exemplo, alunos, diretora,
orientadora, horário, agenda de trabalho referem-se às múltiplas tarefas de que
a professora deve cuidar - de preferência, ao mesmo tempo. Então, ao que dar
prioridade; que decisões tomar? Jogadores, adversários em uma mesma partida
pedem – igualmente – a vitória, mesmo sabendo que ela caberá a apenas um deles.
Concorrência. Competição refere-se a um contexto de
escassez, de limitação, quanto ao fim buscado e ao de multiplicidade ou
diversidade quanto aos que pretendem esse fim ou necessitados dele. Concorrer,
quer dizer correr junto, "dirigir-se para o mesmo ponto". Como
cuidar, simultaneamente, (porque tudo é importante,
esperado, desejado) da vida pessoal, profissional, familiar, etc.? Ou em termos
de concorrência, não se trata de optar ou conquistar um aspecto detrimento de
outros (como ocorre na situação de competição), mas de responder adequadamente
à multiplicidade das tarefas, de atender a tudo, pois tudo tem de ser atendido.
É o caso, por exemplo, da situação de sala de aula. O professor - espera-se -
deve cuidar adequadamente da multiplicidade de aspectos importantes (conteúdo a
ser ensinado, interesses e necessidades de aluno, horário, etc.). Lembro esses
exemplos para dizer que, na perspectiva da ocorrência, muitos fatores, cada
qual com sua importância particular, correm juntos. Não é correto dizer que
competem, nos termos lembrados acima, mas que concorrem, porque todos
necessitam ser atendidos e considerados.
Competência. Como coordenar competição com concorrência? Com
competência. Competência, em sua perspectiva relacional, é uma equação que
expressa o equilíbrio entre dois opostos complementares. A competição, como fim
buscado (necessidade), e a concorrência como repertório (disponibilidade) de
coisas independentes quanto a um fim particular, mas que, na perspectiva do
sujeito, qualificam os meios de uma certa realização. Habilidades, nesse
sentido, são conjuntos de possibilidades, repertórios que expressam nossa
múltiplas, desejadas e esperadas conquistas. Competência é o modo como fazemos
convergir nossas necessidades e articulamos nossas habilidades em favor de um
objetivo ou solução de um problema, que se expressa num desafio, não redutível
às habilidades, nem às contingências em que uma certa competência é requerida.
Competência,
como síntese de uma situação plena de concorrências, pode ser exemplificada em
situações como as que ocorrem no dia-a-dia das salas de aula, quando o
professor deve - ao mesmo tempo - considerar a disciplina dos alunos, a
programação, o barulho, o horário, a seqüência dos conteúdos a serem ensinados,
etc., em um contexto de concorrência (cada fator é importante) e competição
("muitos serão chamados, poucos os escolhidos"), realizar bem seu
compromisso pedagógico.
Algumas
pessoas, nesse contexto de concorrência e competição, saem-se bem: administram
a escassez de recursos e condições, "dão uma força" para os pais e
amigos, sustentam a casa, são boas mães ou pais, etc., isto é, são competentes.
Outras pessoas não sobrevivem; muitas crianças não suportam a concorrência, nem
a competição.
O
mesmo ocorre na solução de um problema, muitos fatores competem, isto é,
disputam entre si; pois estão à disposição do sujeito, já existem para ele.
Competência é a "habilidade", uma qualidade geral, uma estrutura que
coordena, articula – de modo interdependente – todos esses fatores.
Competência
é a qualidade relacional de coordenar a multiplicidade (concorrência) à
unicidade (competição). Para isso, supõe habilidade de tratar – ao mesmo tempo
– diferentes fatores em diferentes níveis. É o que acontece com uma mãe, que
enquanto amamenta o filho pequeno, ajuda (verbalmente) o filho maior a fazer a
lição. Ou seja, cumpre tarefas, ao mesmo tempo, em níveis diferentes (um físico
e próximo, outro verbal e distante).
O
mesmo vale para o professor, que deve ter um repertório de estratégias para
lidar ao mesmo tempo com muitos desafios, lidar com os recursos didáticos, ter
perspicácia e manter tranqüilidade, o que é admirável! Aos olhos de um
observador inexperiente, a situação de sala de aula pode parecer um caos; mas
alguns professores conseguem lidar com a situação de forma competente e
eficiente. Por quê? Porque dispõem de estratégias, recursos variados. Um outro
exemplo é o da criança hiperativa. Às vezes, o problema não está apenas nela,
mas também no professor que não consegue acompanhar seu ritmo, que não tem
estratégias para transformá-la em colaboradora na sala de aula. Então ela se transforma
em um ‘inimigo’, quando na verdade poderia ser um bom companheiro, um bom
parceiro.
Infelizmente,
a maioria dos professores não sentem que dispõem dos recursos acima mencionados
para gerirem as situações de sala de aula. Queixam-se da deficiência de suas
técnicas e estratégias e da insuficiência dos cursos de formação.
Por
isso, acho interessante a imagem da competência relacional como a de um jogo em
que não se ganha na véspera, mas durante o próprio ato de jogar e que é
dependente de fatores que não podem ser criados antes ou depois do jogo.
Malícia, domínio de si mesmo, poder interpretar e tomar decisões no contexto da
situação-problema, coordenar os múltiplos aspectos que concorrem
simultaneamente, etc. são fatores importantes para o que se analisa como
competência relacional.
Concorrência,
competição, competência sempre foram interdependentes e presentes nas relações
humanas e entre os elementos da natureza. As plantas, por exemplo, competem por
tempo, espaço, água, sol, e isso não é bom nem ruim, enquanto juízo de valor em
si. O importante é a tomada de consciência, é refletir sobre as implicações
disso.
Assim
também é no jogo. Nele muitos aspectos concorrem e competem. Por isso, o jogo é
um desafio para o desenvolvimento da competência. Um jogador competente é o que
consegue administrar a favor de seus interesses e objetivos e os múltiplos
aspectos que devem ser coordenados numa tomada de decisão.
Mas,
consideremos que um jogo sempre supõe um desejo, um querer, um vencer. Às
vezes, ficamos muito do lado do perdedor, ou seja, do que é desagradável,
perigoso e incompetente no jogo. O interessante, ao contrário, é se perguntar
como um jogador pode, também, ter experiências construtivas, ou seja, construir
recursos que o fortaleçam para enfrentar o jogo, que lhe possibilitem a
vitória, ou, pelo menos, perceber que esteve perto dela
à
medida que demonstrou possuir muito dos fatores que concorriam para o sucesso,
mas não todos, ou não com a coordenação necessária para vencer o desafio.
Autonomia
como princípio didático
No
livro introdutório dos Parâmetros Curriculares Nacionais (de primeira a quarta
série), há um capítulo sobre "orientações didáticas". Os títulos que
encabeçam as diferentes partes desse capítulo são: autonomia, diversidade,
disponibilidade para aprendizagem, interação, cooperação, organização do espaço
e do tempo e seleção de material.
Por
que autonomia está em um capítulo sobre orientação didática? O que significa
autonomia como princípio didático, se nosso costume mais freqüente é ler sobre
esse termo como um princípio moral ou ético? A importância da autonomia como
princípio didático sempre foi valorizada por Piaget.
Para
explicar por que autonomia é, de fato, um princípio didático, pensemos o
exemplo do que ocorre com as lombadas das vias públicas e das estradas. Pode-se
analisar nossa relação com esse obstáculo de três modos distintos. O primeiro
nos lembra que a lombada é um redutor de velocidade que deve ser respeitado
como limite físico. Caso contrário, nosso automóvel pode ser danificado. Ou
seja, a lombada nos impõe um limite que temos de respeitar, para não arcar com
prejuízos. O segundo aspecto corresponde ao que pensamos, julgamos, sentimos,
sobre lombada. Podemos ser contra e achar que isso é controle de países de Terceiro
Mundo. Ou seja, na prática, respeita-se a lombada, no pensamento, critica-se a
estratégia antiquada e desagradável. Um terceiro aspecto é o de se fazer
gestões para a mudança dessa regra com a qual não concordamos. As gestões,
dentro de nossos limites, podem ser de muitas formas: fazer críticas verbais,
escrever cartas, etc. O importante é que se faça algo para a mudança de uma lei
com a qual não se concorda.
Assim,
também acontece no jogo. Nele também há um jogar concreto, que implica tomar
decisões no contexto das regras e do objetivo a ser alcançado, resolver os
problemas propostos, etc. Por outro lado, há uma teoria das melhores jogadas,
as explicações ou interpretações que se dá para o ganho ou perda, enfim, todo
um conjunto de idéias sobre o jogo. E há, tal como no exemplo da lombada, o que
se faz para aperfeiçoar o jogo, ou a forma de jogar, o estudo, etc., tudo
aquilo que se faz para se tornar um melhor jogador, ou para melhorar a forma de
ser de um jogo. As três dimensões estão interligadas, mas expressam dimensões
diferentes.
Mas,
de que forma isso tudo se relaciona com autonomia? Piaget valorizava autonomia
como método didático. Durante trinta anos, aproximadamente, ele foi diretor do Bureau International de l’Education da Unesco. Para comentar e analisar os
diferentes métodos pedagógicos que se usavam em muitos lugares do mundo, Piaget
utilizava três princípios metodológicos: 1) ativo, 2) de autonomia ou
autogoverno e 3) de trabalho em equipe ou de cooperação.
O
construtivismo de Piaget não é um método, mas se refere, justamente, a esses
três princípios metodológicos. Muitos métodos diferentes adotam princípios
construtivistas.
Autonomia
como método pedagógico refere-se a permitir, despertar, favorecer, promover,
valorizar, exercitar o poder de pensar da criança. O pensamento como uma
possibilidade ou necessidade diferente da realização ou do aperfeiçoamento
propriamente dito daquilo a respeito do qual se pensa. Quando uma professora
valoriza, em sala de aula, discussões sobre os diferentes resultados de uma
conta, ela está praticando o princípio da autonomia como um princípio
metodológico. Argumentar, descrever, ter idéias diferentes sobre uma mesma
coisa, etc., em um contexto de iguais, são ações que contribuem para o
desenvolvimento da autonomia. Autonomia é uma disciplina de poder pensar a
realidade de modo interdependente com ela.
Autonomia
nos ajuda a compreender porque - mesmo que não se possa decidir sobre certos
temas - é importante discutir sobre eles. Ou seja, há temas que não se votam na
sala de aula, mas que é importante discutir sobre eles. Por exemplo, há uma lei
que proíbe que se fume em espaços públicos como a sala de aula. Do ponto de
vista do primeiro aspecto, acima mencionado, essa restrição é terrível para um
dependente de nicotina. Mas, há, igualmente, o fato de que uma lei biológica
prova cientificamente que fumar prejudica a saúde, pois pode provocar várias
doenças, dentre elas o câncer. Há também uma lei social que diz que será
multado, ou preso, quem a ela desobedecer. Portanto, não se trata de votar, ou
de decidir, sobre a possibilidade, ou não, de se fumar em sala de aula. Do
ponto de vista do segundo aspecto, acima mencionado, talvez fosse bom analisar
o sofrimento de um viciado em nicotina que deve permanecer em um local onde não
possa fumar por mais de uma hora. Talvez fosse bom analisar também o direito de
não contaminação dos que não fumam e permanecem em ambientes comuns aos
fumantes como, por exemplo, a sala de aula.
Autonomia,
então, é o método que autoriza e fornece estratégias para promover um
pensamento sobre uma realidade, mas em condições independentes de sua
realização ou limites. Autonomia, é aprender a pensar, argumentar, defender,
criticar, concluir, antecipar.
Sabemos
que há métodos mais econômicos e melhores para fazer cálculos. Por esse lado, é
tolice perder tempo com técnicas pobres e limitadas. Mas, na perspectiva da
autonomia, deve-se permitir que a criança repita, às vezes de forma até mais
precária, a evolução social de um desenvolvimento matemático. Por isso, é
interessante analisar as soluções apresentadas pelas crianças, promover a
discussão dessas soluções, permitir que aquelas enfrentem suas pseudo-soluções,
contradições e que na diversidade das formas apresentadas, a forma melhor possa
pouco a pouco ser vitoriosa. Para isso, é necessário que o professor tenha
conhecimento (da história sociocultural de uma noção, no caso), confiança e
paciência. Por isso, na perspectiva do desenvolvimento da autonomia, o
professor, além de dar informações, funciona como um coordenador das discussões
sobre as diferentes soluções; é ele quem formula as boas perguntas e que, qual
pesquisador, coleciona as diferentes respostas produzidas por seus alunos, que
as compara, aprofunda, etc.
Não é
fácil ser coordenador desse tipo de discussão. Como promover, liderar, conviver
com os impasses de tantas diferenças e discordâncias? Autonomia como princípio
pedagógico tem o valor educacional de promover, nos limites da idade das
crianças, dos temas, de suas possibilidades cognitivas, de promover o
argumentar, pensar, formular hipóteses, dizer sim, dizer não, apresentar
argumentos, justificar, etc. Pois é essa qualidade de pensamento que vai nos
libertando do real para que possamos, inclusive, ser bons parceiros.
Dessa
forma, independentemente de não se poderem votar certos temas, não estamos
proibidos de pensar a respeito deles. Se não podemos votá-los, que gestões ou
decisões podemos tomar para administrar essa impossibilidade? Quem sabe liberar
a cada quarenta e cinco minutos o professor, os alunos fumantes para que eles
cultivem seu vício longe da sala de aula? Quem sabe encontrar soluções
alternativas para esses viciados? Autonomia, como método, ou seja, disciplina,
cria um espaço social e mental para recriar regras, discutir, negociar
pensamentos diferentes, encontrar saídas par uma realidade difícil e
limitadora.
Ser
autônomo não é ser independente. Ser autônomo é ser responsável pelo que se faz
ou pensa. Se pensamos algo, devemos aprender a defender essa opinião, e isso é
de nossa responsabilidade.
Autonomia
não é sinônimo de independência, porque nenhum de nós é independente. Ser
autônomo é ser responsável pelos próprios atos e pensamentos como método. Uma
criança recém-nascida, às vezes com problemas de saúde, tem aspectos que são
unicamente de sua responsabilidade. É responsável pelo seu mamar, por exemplo;
sua mãe não pode fazer isso por ela. Essa criança já tem autonomia, pois tem
responsabilidades: respirar, vomitar, defecar, reagir à dor, ou seja, a
autonomia começa nesse plano de ações que somente o sujeito pode fazer por ele
e que termina no plano do pensamento formal, ou hipotético dedutivo, em que o
sujeito é responsável por suas produções, pelo que faz em contexto social e
profissional.
Autonomia
não é sinônimo de independência porque se expressa em um contexto relacional. A
criança é responsável pelo seu mamar, mas não tem mamas nem leite. Ser autônomo
é ser parte e todo ao mesmo tempo, por isso não se é independente. Por que é
ser parte? O mamar é uma ação do sujeito, algo de sua responsabilidade,
conquistado pelo dever sociocultural de ser alimentado e cuidado pelos mais
velhos e pelo poder biológico em sua condição de mamífero. Mas mamífero que
depende de uma mama, que depende de certas condições sociais que favorecem esse
ato.
O
mesmo acontece num contexto de jogo: quando chega a vez de alguém jogar, ele
torna-se o único responsável por suas decisões. Ter autonomia para decidir
ainda não significa ser independente. Por exemplo, a autonomia como gesto que
possibilita o engatinhar significa construção de uma coordenação motora em que
braços e pernas se articulam de modo interdependente. Braços e que braços e
pernas têm movimentos independentes, mas o engatinhar, como autonomia, implica
que agora ambos são simultaneamente parte e todo ao mesmo tempo.
Autonomia
não é independência porque expressa sempre um contexto relacional. Por isso,
autonomia é um exercício de interdependência.
Refletir
supõe discutir, como gostava de dizer Piaget, recordando uma frase de Pierre
Janet: "discutir é refletir com os outros; refletir é discutir consigo
mesmo."
A
competência do sujeito e a do objeto, cedo ou tarde, hão de resultar em uma
competência relacional, sob pena de uma ou outra se perderem. A competência
conceptual, por exemplo, de uma professora e a "competência" do livro
que utiliza como apoio para suas aulas devem incorporar, no contexto de sala de
aula, a competência dos alunos. A competência desses supõe descobrir ou
inventar novamente (reinventar) o que no plano da professora ou de seu livro já
estavam presentes. A competência relacional corresponde, por isso, a urna
hipótese fundamental do conhecimento como coordenação de perspectivas, de uma
dupla referência (a do sujeito e a do objeto) que ao interagirem criam urna
terceira forma de conhecimento delas resultante. Em outras palavras, o objeto
(o conhecimento organizado como objeto, disciplina, como corpo conceptual,
agora independente dos sujeitos que o produziram) e o sujeito (as pessoas ou
ações das pessoas que agindo sobre os objetos produziram um conhecimento sobre
ele), considerados independentes um do outro, devem agora operar como parte e
todo ao mesmo tempo, em um contexto de interdependência.
A
autonomia na perspectiva de uma competência do sujeito ou do objeto pode ser pensada
em sua condição independente, livre, como um todo, que opera por si mesmo. A
autonomia na perspectiva da competência relacional deve ser pensada em sua
condição interdependente, em que parte e todo formam um sistema. Autonomia,
nessa perspectiva, supõe responsabilidade (compromisso de uma parte com outras)
e reciprocidade (interagir de forma mútua, em que a melhoria de uma parte supõe
a de outras partes). Nesse sentido, é que vale a frase "se as crianças não
aprenderam, o professor não ensinou." Por isso, agora há pesquisas para o
desenvolvimento de técnicas e estratégias de como promover uma discussão em
matemática, história, geografia, etc.
Autonomia
é mais do que uma questão ética ou moral, é um princípio didático que supõe o
desenvolvimento de uma competência para ensinar com essa qualidade construtiva.
Piaget dizia que "a lógica da ação corresponde a uma moral do
pensamento". A autonomia é uma forma de moral do pensamento que, livre,
reflete sobre o objeto, mas que, responsável, não confunde esse pensamento com
a própria realidade sobre a qual reflete. Essa moral do pensamento, para ser
assim, há de exibir, pouco a pouco, propriedades reversíveis, antecipatórias,
argumentativas, etc. No jogo, por exemplo, o jogador é desafiado para
conquistar autonomia, planejar as jogadas, avaliar, no sentido de regular suas
ações em cada momento da partida em função do objetivo, das jogadas do
adversário, etc.
Esse é
o sentido de se considerar a autonomia como uma orientação didática. Como uma
disciplina que promove uma competência relacional nos alunos, que os educa para
uma interação com qualidade interdependente. Para isso, sem dúvida, não basta
dominar técnicas que promovam essa forma de autonomia, é preciso também que o
professor se disponha a construir essa forma de pensamento e relação como algo
que vale também para ele.
Aprendizagem
significativa e competência relacional
Outro
termo presente nas orientações didáticas é a aprendizagem
significativa. Essa expressa uma certa qualidade de disponibilidade para a
aprendizagem escolar. Piaget considera essa forma de aprendizagem como método
ativo. A hipótese é que se uma aprendizagem não for significativa, sua
aquisição estará, cedo ou tarde, comprometida. Lembremo-nos do primeiro momento
de uma situação de jogo: sempre começa com a pergunta: "Vamos
jogar?", "Quer jogar?". Ao longo da partida, a condição positiva
da resposta a essa pergunta estará presente, apesar dos desafios, frustrações,
problemas que se possam enfrentar.
A
aprendizagem significativa instaura novamente na escola uma condição
fundamental de nossa busca de conhecimento. Essa condição é a do desejo, ou
seja, do conhecimento como necessidade, algo que "falta ser", que
ainda não é nos termos pretendidos ou aceitos pelo sujeito. No contexto da
competência relacional, isso é interessante porque o desejo se instaura como
busca e como complementaridade. A busca supõe a devoção daquele que deseja,
isto é, trabalho, compromisso, responsabilidade. Complementaridade supõe sair
dos limites de onde se encontra e incluir um outro todo como parte. Marías
analisa essa questão no plano do jogo, como forma de ilusão. Ou seja, o que
anima os adversários em um jogo é a mesma ilusão: vencer. Essa ilusão
corresponde ao que se chama de "desejo com argumento", ou seja, como falta
traduzida em ações e busca, dirigidas por um objetivo ou finalidade, ações que
são reguladas por essa meta a ser alcançada. Daí a dupla condição para
competência relacional: desejo e devoção. Desejo como fim ou direção. Devoção
como meio ou instrumento. Ou, como quer a sabedoria popular: "quem ama,
cuida".
Desejo
e devoção são cognitivos e afetivos ao mesmo tempo. Cognitivos porque supõem
uma formulação, uma pergunta, hipótese ou proposição. Porque supõem construção
de recursos, tomadas de decisão, avaliação reguladora, etc. Afetivos porque
supõem um querer, supõem a atribuição de uma significação pessoal, no sentido
de que algo ainda não é para um sujeito, mas deve ser.
A
aprendizagem significativa supõe que se encontre "eco" no sujeito a
quem é proposta. Daí sua vinculação com uma forma relacional de competência. A
aprendizagem significativa e uma das condições defendidas por Piaget para um
método pedagógico ser construtivo. Significativa porque expressa essa categoria
da paixão: deixar-se, como sujeito a ser atravessado por um objeto; por isso,
estar envolvido, interessado, ativo, em tudo o que corresponde a sua
assimilação. Por isso, Piaget, ao menos com as crianças, era muito crítico ao
que chamava de "verbalismo da sala de aula". O verbalismo refere-se
às exposições orais (explicações) para crianças sobre temas que as excluem por
sua natureza formal, conceptual, adulta. A conseqüência disso, não raro, é a
presença de crianças apáticas, desinteressadas, passivas, ou, então, agitadas,
indisciplinadas e pouco cooperativas. As mesmas exposições, com adultos, podem
ser positivas, pois estes possuem mais recursos cognitivos para se relacionar
com essa forma de linguagem. Ou seja, um adulto, mesmo que só escutando, tem
recursos de pensamento para manter um "diálogo" ativo (anota, faz
associações, concorda, etc.) com o assunto que está sendo exposto.
O
construtivismo não se reduz a um método pedagógico em particular, ao menos na
perspectiva de Piaget. Caracteriza-se por princípios ou propriedades que
diferentes métodos podem ter. A disponibilidade para a aprendizagem, ou seja, a
condição ativa, significativa, é uma dessas propriedades, como mencionado. Há
métodos de ensino que são envolventes, que formulam projetos e que dão sentido
ao que se faz na escola. O mesmo se aplica a certos professores. Alguns possuem
características pessoais muito positivas, são envolventes, têm auto-estima, são
instigantes, estão comprometidos com seu trabalho, gostam de crianças, sabem
mobilizá-las, sabem dar sentido às atividades propostas. Em uma palavra, são
competentes. Há métodos competentes. Há professores competentes.
Método
da cooperação e a competência relacional
Valoriza-se,
atualmente, uma forma de trabalhar em equipe em que todos estão envolvidos, de
forma interdependente, por mais diferentes que sejam o nível de participação e
a complexidade das tarefas de cada um. Essa forma difere, por exemplo, daquelas
em que as participações são tomadas de modo independente, linear e aditivo.
Independente porque uma parte não se relaciona com as outras. Linear porque o
processo se expressa por uma seqüência em geral fixa, definida. Aditivo porque
o todo (por exemplo o objeto que se quer produzir) é montado por um conjunto de
partes em uma relação de dependência / independência. No primeiro caso, a forma
de competência mais importante é a relacional. No segundo, é a competência do
sujeito ou do objeto.
O jogo
possui as características acima mencionadas. Como instrumento de relação de um
sujeito com um certo problema ou desafio, o jogo tem uma força sedutora e
implica uma ação atravessada pelo desejo e pela devoção.
A
competência relacional supõe uma abertura para a diversidade. Diversidade de
pontos de vista, para as múltiplas formas de algo se expressar, de
variabilidade de contextos. É o caso de uma discussão com essas
características. Pode-se argumentar de diferentes modos, há abertura para
soluções divergentes, há espaço para diferenças.
Valoriza-se,
muitas vezes, no jogo apenas sua dimensão competitiva, ou seja, seu limite,
imposto pela regra de que só haverá um ganhador, quando todos querem - ao mesmo
tempo e nas mesmas condições - a vitória. Essa condição de escassez ou de
restrição cria um contexto de competição por um resultado, desejado por todos,
mas que será obtido, em uma dada partida, para uma das partes, apenas. Mas, na
perspectiva da competência relacional, mais importante é o processo de jogar, é
a qualidade do modo como se joga. Ora, essa dimensão do jogo é cooperativa, não
é competitiva. É marcada pela interdependência. No jogo, cada parte depende da
outra. Se um jogador não movimenta sua peça, o outro, na vez seguinte, não
poderá fazer sua jogada. Todos estão submetidos às mesmas regras, ao mesmo
tabuleiro, etc. Por isso, o jogo, como processo, é um exercício de
interdependência, de cooperação, não de competição, mesmo em jogos
competitivos.
Tomemos,
como exemplo, o jogo de futebol. Este é um jogo competitivo se consideramos
apenas na perspectiva do resultado. Como processo, trata-se de um trabalho de
equipe. Por isso mesmo, às vezes ocorrem desentendimentos, brigas, porque um
jogador foi individualista, não passou a bola, etc.
Cooperação
é um método de trabalhar com essa qualidade. O bedel coopera com a meta
educacional da escola. Certas informações, certas oportunidades de intervenção
ele tem melhor do que o professor, (***). Nos cantos a escola, nos banheiros,
nos momentos em que o aluno não está visível para professores, orientadores ou
diretores. Eles fazem parte do sistema, fazem parte a equipe pedagógica. Por
isso, a cooperação não é só uma filosofia, uma ética, mas igualmente um método
que supõe competência relacional. Por isso, segundo Piaget, o método pedagógico
que promove a cooperação é mais construtivo do que um método que não a promove.
Sem cooperação é muito difícil construir alguma coisa.
Um tabuleiro chamado escola
No
tabuleiro chamado escola, a organização espacial das atividades pedagógicas é
fundamental. Onde estão os materiais? Onde acontecem as atividades? Como é que
um acontecimento se relaciona com outro do ponto de vista espacial? Quais são
os deslocamentos proibidos e permitidos? Como se organizam os deslocamentos dos
alunos na escola? Como é que se delibera sobre isso? Como é que se constroem e
se administram as regras na escola?
As
questões formuladas acima e tantas outras que se poderia fazer encaixam-se no
tema gestão da sala de aula. Infelizmente, há professores que
são "maus gerentes" na sala de aula, apesar de seu conhecimento dos
conteúdos. Não sabem administrar o tempo, nem o espaço das atividades,
selecionam mal os objetos. Gastam muito tempo em uma atividade, depois não têm
tempo para uma outra, igualmente importante. Não sabem dosar o conteúdo.
Falta-lhes competência relacional. Hoje, espera-se que o professor seja um
gerente, um gestor da sala de aula. E uma das grandes queixas dos professores é
que não se sentem competentes para isso. Dizem não saber administrar o tempo da
aula, os ritmos dos alunos, a narrativa desse acontecimento, com suas paradas,
obstáculos, com seu desenrolar, com seus imprevistos. Falta-lhes, insisto,
competência relacional.
De
fato, localizar a questão espacial e temporal, bem como a seleção de materiais
como orientação didática é reconhecer que a gestão de sala de aula é tão
importante quanto o domínio dos conteúdos que se ensinam, porque a aprendizagem
desses conteúdos depende da qualidade dessa gestão. Por isso, hoje, a avaliação
tornou-se também relacional, no sentido de que se refere a um instrumento que
possibilita qualificar, regular para mais ou para menos, os diferentes aspectos
a serem considerados na dinâmica da sala de aula.
A
competência relacional é muito importante em uma visão construtivista do
processo de aprendizagem escolar. Para essa visão, a interação caracteriza-se
por trocas que podem gerar, por sua própria realização, uma tensão, uma
perturbação. Voltando ao tema acima comentado, a administração do tempo na sala
de aula é um bom adversário da transmissão de conteúdo. Como explicar em vinte
minutos um certo tema, incluindo aí questões ou dificuldades dos alunos em
acompanhar a explicação? Na visão construtivista, como em termos de competência
relacional, não interessa o que marca as diferenças, mas o que as coordena. Há
outras formas de interação em que o interessante é o que afasta, dificulta. Não
o que, reconhecendo o impasse, constrói formas de convivência ou superação. Por
isso, justificar que faltou tempo para dar uma aula eficiente não é uma boa
razão, pois os limites do tempo já estavam lá. Como dar uma "mesma
aula" em cinco minutos, cinco meses, cinco anos? O desafio, do ponto de
vista relacional, é como comunicar, em um desses tempos, algo que seja
pertinente e interessante sobre o assunto. Esse é o desafio em uma perspectiva
relacional.
Quando
só se dispõe de dez minutos para expressar algo significativo em uma relação,
como bem aproveitar esse tempo? Se alguém é significativo ou representa algo
significativo para nós e esse alguém está para morrer nos próximos dois meses,
o que pode ser feito? Nem sempre se tem vinte anos para estar com alguém, às
vezes são apenas vinte minutos. O que fazer ou dizer que seja significativo de
um ponto de vista humano, relacional? Uma coisa é valorizar o que falta, aquilo
de que não se dispõe, outra é valorizar o que pertence a ela, é possível, pois,
estar dentro da relação.
Competência
relacional é um convite para considerar a multiplicidade dos aspectos que
possibilitam o ser, ou não, de algo. Penso que somos
ainda muito marcados pelas duas outras formas de competência (a relativa ao
sujeito e ao objeto). Ainda nos é difícil, mormente para certos conteúdos e em
certos contextos, considerar o que é comum, o que respeita mutuamente os
diferentes aspectos de uma situação. Ainda nos é difícil aceitar o "melhor
argumento", aquele que produzido em um contexto relacional resulta da
contribuição de todos, ainda que em diferentes proporções ou formas, e que não
decorre de competência expressa de um único sujeito ou único objeto.
Tomemos
como exemplo, uma discussão em sala de aula sobre os diferentes resultados para
uma mesma conta e os argumentos ou procedimentos que as crianças utilizam para
justificar ou produzir tais resultados. O melhor argumento, o melhor procedimento
(no sentido aritmético), mesmo que produzido por um único aluno, há de ser
considerado como produção coletiva, como acordo tirado de uma discussão em que
todos de algum modo contribuíram para ela.
O que
é comum a diferentes formas de calcular? Como decidir pela melhor forma e
tornar seu argumento ou procedimento compreensível, aceitável, para aqueles que
utilizaram outras formas? Como reunir as diferenças em favor de algo comum? Ou
seja, há diferenças que separam, há diferenças que aproximam. Na competência
relacional, são as diferenças possíveis de serem integradas, coordenadas, não
importa em que nível, que interessam.
Em uma
sala de aula, todos podem, de algum modo, contribuir. Mesmo aquele que fala ou
realiza algo muito discrepante ou sem sentido pode ajudar. O problema, de
natureza relacional, é como incluir sua participação. Ou seja, a questão é como
aproveitar uma expressão humana em favor de algo que é superior a ela. Insisto,
o melhor argumento nunca vem só de um lado, nunca é exclusivo das qualidades
excepcionais de um sujeito ou objeto. A competência relacional é, por isso, um
convite para esquecermos nossa arrogância, para deixarmos de ignorar os
ignorantes, os excluídos, os que muitas vezes só podem contribuir de uma forma
negativa, perturbadora, desajeitada.
Mas,
essa qualidade de pensar de forma relacional supõe autonomia, cooperação, supõe
a coordenação de valores que exigem tempo para sua construção.
* Diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, autor da Matriz de competência do ENEM.
- Seminário ENEM - 1999
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